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Paulina Chiziane: a voz das mulheres moçambicanas

Por: Juliana Primi


Paulina Chiziane tece em seus escritos sua voz misturada à voz de outras moçambicanas. Nascida em 4 de junho de 1955, na província de Gaza, Moçambique, iniciou as atividades literárias na imprensa, em 1984, e seu primeiro livro, Balada de amor ao vento, foi publicado em 1990. Frequentou o curso de Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, mas não o concluiu.

Considerada a primeira romancista moçambicana, ela prefere se definir como “uma contadora de estórias”, já que sua inspiração vem “dos contos à volta da fogueira”, sua “primeira escola de arte”.

“Entre as pernas da mulher, correm os caminhos do mundo” (CHIZIANE, 2008, p. 9). É com esta frase, da escritora angolana Dya Kasembe, que Paulina Chiziane convida o leitor a viajar pelas linhas de O alegre canto da perdiz, quem sabe na tentativa de reatualizar o velho mito da mulher redentora. Michelle Perrot (2006, p. 168) atenta para o fato de que as representações de poder das mulheres na arte são numerosas e antigas, mas muitas vezes recorrentes. Elas modulam a aula inaugural do Gênesis, que apresenta a potência sedutora da eterna Eva:

 

As representações do poder das mulheres: imenso tema de investigação histórica e antropológica. [...] A mulher, origem do mal e da infelicidade, potência noturna, força das sombras, rainha da noite, oposta ao homem diurno da ordem e da razão lúcida [...].

 


Em entrevista a Waltecy Alves dos Santos, Paulina Chiziane afirma que

 

 

[...] na história do Ocidente, a condição de filhas de Eva é o laço de sangue comum a todas as mulheres do universo. [...]. Há diversos relatos bíblicos a este respeito, porém o mito de Adão e a concepção de Eva e sua postura desobediente é o que mais deixou resquícios na visão ocidental.



Em seus escritos, Chiziane tece sua voz misturada à voz de outras moçambicanas. Considerada a primeira romancista de seu país, ela prefere se definir como “uma contadora de estórias”, já que sua inspiração vem “dos contos à volta  da fogueira”, sua “primeira escola de arte”.

São os “contos à volta da fogueira” que permitem construir uma temporalidade já decorrida, através da presentificação daquilo que se esvaiu, pela oralidade. Ao escrever suas estórias, a autora fixa o passado, inaugurando uma nova temporalidade, que oscila entre o pretérito e o presente, mas não se retém em nenhum deles. E é nesse propósito que a memória, como elemento de historicidade, traz para o campo do enredo um importante elemento: o testemunho, atribuindo à narrativa coerência e significado (PESAVENTO, 2005)

No romance, o canto e o conto se misturam à voz griotizadora da escritora (VALENTIM, 2008) representados, logo no início da narrativa, pela “velha esposa do régulo”, detentora da sabedoria, única a não estranhar a atitude da louca em nadar nua no rio Licungo, desmistificando o sinal de mau presságio notado pelas mulheres que haviam presenciado o ocorrido

- Calma, criaturas. Não houve presságio nenhum na guerra que foi, mas morreu gente. Não houve anúncio na seca que findou, mas houve tormenta. Não houve profecias misteriosas antes da praga de gafanhotos que dizimou os campos e nos matou de fome.

A voz da mulher do régulo era chuva fresca. Tinha o poder de serenar multidões. Era o poder das ondas mansas embalando as embarcações na valsa da brisa. [...]

-  Ela trazia uma boa nova escrita do avesso – garante a mulher do régulo. – Mensagem de fertilidade. Essa maluca era a verdadeira mensageira da liberdade, minha gente.

(CHIZIANE, 2008, p. 20)



 

Esta personagem, prestigiada por sua sabedoria — o “lado épico da verdade” (BENJAMIN, 1996, p. 201) —, relata, pela voz do narrador, que o mundo foi criado tendo como centro os montes Namuli:

 

 

No princípio de tudo. Homens e mulheres viviam em mundos separados pelos Montes Namuli. As mulheres usavam tecnologias avançadas, até tinham barcos de pesca. Dominavam os mistérios da natureza e tudo... eram tão puras, mais puras que as crianças numa creche. Eram poderosas. Dominavam o fogo e a trovoada. Tinham já descoberto o fogo. Os homens ainda eram selvagens, comiam carne crua e alimentavam-se de raízes .[...] Um dia, um homem jovem tentou atravessar o rio Licungo, para saber o que havia. Ia afogar-se quando aparece a linda jovem, sua salvadora, que meteu o homem no seu barco. Como houvesse frio, a jovem tentou reanimar o moribundo com o calor do seu corpo. O homem olhou para o corpo dela, completamente aberto, um antúrio vermelho com rebordos de barro. Ali residia o templo maravilhoso, onde se escondiam todos os mistérios da criação. E depois...

(CHIZIANE, 2008, p. 21)



 

Símbolo da perdição da humanidade, de acordo com os preceitos cristãos,  Eva, assim como Maria das Dores, que mergulha nua nas águas do rio Licungo, é imaginada aqui como ideal de beleza e feminilidade, aquela que possibilita aos homens a salvação, pondo fim à mitologia patriarcal, que define a mulher como criação masculina.

A respeito da formação da África, em entrevista a Gil Filipe no Jornal Notícias (2008), a escritora pontua:

 

Dizem umas vozes muito idosas [...] que os montes Namuli foram criados no ovo de uma perdiz. Então, é daí que achei formidável criar o título a partir desta mitologia e destas estórias de uma terra também formidável.



 

A narrativa nos traz a história de vida das zambezianas, das moçambicanas, que carregam as dores das guerras pré e pós-independência, marcadas pelo domínio patriarcal do colonizador, que encontrava nas mulheres um modo de dominar os colonizados — a miscigenação:

 

 

Fomos invadidos pelos árabes. Guerreados pelos holandeses, portugueses. Lutámos. As guerras dos portugueses foram mais fortes e corremos de um lado para outro, enquanto os barcos dos negreiros transportavam escravos para os quatro cantos do mundo. Vieram novas guerras. De pretos contra brancos, e pretos contra pretos. Durante o dia, os invasores matavam tudo, mas faziam amor na pausa dos combates. Vinham com os corações cheios de ódio. Mas bebiam água de coco e ficavam mansos e o ódio se transformava em amor. As mulheres se parecem com coco, não acham? As mulheres violadas choravam as dores do infortúnio com sementes no ventre, e deram à luz uma nova nação.

(CHIZIANE, 2008, p. 23)



 

A Zambézia, província do centro-norte de Moçambique, onde Paulina viveu durante anos e trabalhou como assessora da DPMAS (Direcções Provinciais da Mulher e Coordenação da Acção Social), apesar de seus vastos recursos naturais e do seu potencial agrícola, registra um dos mais elevados índices de pobreza do país. Meninas e meninos, a partir dos 10 anos, fazem os ritos de iniciação. Para as meninas, isso significa que já são aptas para casar, e o casamento precoce, como já vimos, origina o abandono da escola, muitas vezes, antes de completarem o primeiro grau de ensino.

Este quinto romance, bem ao estilo de Chiziane, recheado de cenas do cotidiano — “As casas ricas da cidadela, os casebres. Os fumos das cozinhas espiralando-se no ar, [...]. O cheiro do rio. Das águas paradas dos charcos. Da frescura das algas e das pedras” (Ibidem, p. 28), de frases curtas — “Somos de diferentes gestas. Diferentes ventres. Diferentes lugares” (Ibidem, p. 24) —, sintaxe simples e direta — “O deserto está dentro de cada um. Nesta terra não há deserto, tudo é verde e tudo ri” (Ibidem, p. 191) — , assemelha-se, por vezes, a um ensaio, composto por quem provou a história de vida das mulheres moçambicanas e agora submete-a à reflexão, atacando-a de diversos lados e reunindo no olhar do espírito aquilo que viu, de modo a pôr em palavras o que se permitiu vislumbrar (ADORNO, 2008).

Dividida em trinta e quatro capítulos, a narrativa desenvolve-se com o narrador ora em primeira pessoa (Delfina), ora em terceira pessoa. Quando em primeira pessoa, o narrador convoca os arquivos de memória de Delfina e Maria das Dores, exercendo a função de centro de rememoração e de reintegração do passado.

Assim se resume a vida de Delfina, “uma negra daquelas que os brancos gostam”, mulher bonita, analfabeta, que busca superar a linha da raça pelo sexo, negando sua cor, seus costumes, sua língua e sua religião:

 

 

[...] Foi a primeira negra com casa electrificada. A primeira com uma casa de cimento coberta de zinco no bairro dos negros. Foi dela o primeiro homem branco a residir no bairro dos negros. Foi ela a primeira negra a residir no bairro dos brancos. Os mais velhos suspiram por ela: Delfina, como era bela! Delfina, a rainha! Que desafiou brancos, desafiou o sistema, entrou na guerra, ganhou e perdeu, e pela vida se perdeu. Por isso a sua vida foi transformada em canto, em conto, em poema. Ela é parábola e ditado. Provérbio. Esta é a Delfina.

(CHIZIANE, 2008, p. 268)

 

É também a história de vida de muitas mulheres africanas, traduzida na perda da fantasia, do ideal, numa espécie de visita aos montes Namuli, à cidade do Gurué e a Zambézia.

No quadro histórico de colonialismo, o casamento dela com o negro José dos Montes, delator e assassino de seus conterrâneos, a quem a ex-prostituta trai com outros homens, significa a impossibilidade de felicidade, quando se vive sob a suprema alienação, aquela que não permite sequer a consciência de si mesmo:

 

José percorre a magia luminosa das aparências. Na cegueira perseguindo os caminhos do abismo. Colonizar é mesmo isto. Desviar o curso do rio. Matar de sede os peixes, as algas e os corais. José mergulha na nova corrente e afoga-se entre as folhagens das algas. Por amor, julga ele. Mesmo sem amor as comportas se fecham, quem resiste, morre. Colonizar é fechar todas as portas e deixar apenas uma. A assimilação era o único caminho para a sobrevivência.

(Ibidem, p. 117)


 

Ainda neste contexto, Serafina, mãe de Delfina, perde seus três filhos na guerra, assim como Maria das Dores perde seus três filhos no mundo:

 

Três crianças arrancadas dos braços de Serafina ao som das balas dos sipaios. Dentro do coração da Serafina, a contradição. É assolada por um desejo irresistível de abraçar, afagar e mimar aquele jovem com ternura de mãe. O desejo é derrubado por espíritos adormecidos na tatuagem da memória. [...].

(Ibidem, p. 94)



Ao viver a miséria imposta pelo sistema colonial, Serafina encontra na venda da virgindade da filha uma alternativa para melhorar sua situação econômica. A desvalorização do corpo feminino, tanto por Serafina quanto por Delfina, que comercializa o seu próprio corpo e o de sua filha, Maria das Dores (a louca do rio), a


 

exemplo de sua mãe, opõe-se à valorização do útero como órgão responsável pela capacidade de procriação, ao reconhecimento da figura materna como modelo feminino.

Outrossim, o corpo é visto como lugar de representação e de identidade do indivíduo. O sujeito, ao modificá-lo através da tatuagem, torna legítimas a afirmação de sua cultura e a revelação de sua singularidade, conforme sinaliza o romance:

 

A velha arqueou as sobrancelhas olhando para o ventre de Maria com interesse redobrado.

As tatuagens belas, geométricas, pareciam uma teia, malha, cinto de renda bordada à mão, cobrindo apenas o ventre. Analisa os relevos. As saliências. Reentrâncias. Decifra a mensagem de cada símbolo e reconhece as origens de Maria. São tatuagens lómwè. Ela é oriunda das montanhas, e naquelas veias corre o sangue sagrado das pedras. [...].

Os povos africanos tiveram de carimbar o corpo com marcas de identidade. Cada tatuagem é única. É marca de nascença. No corpo, desenhando-se o mapa da terra. Da aldeia. Da linhagem. Em cada traço uma mensagem. Árvore genealógica. A tatuagem ajudou à reunificação dos membros da família, em São Tomé. Na América. Nas ilhas Comores, em Madagáscar, nas Maurícias e outros lugares do mundo. [...].

(Ibidem, p. 31)



 

A Zambézia configura-se como uma das principais personagens do livro, não por acaso, já que, no período colonial, foi o local onde as mulheres tiveram expressiva representatividade junto ao sistema de prazos. Tal como Delfina e muitas negras, a província rendeu-se ao poder do branco, como homem ou colonizador, levando no corpo as dores e marcas dessa entrega:

 

 

De todas as sereias, a Zambézia era a mais bela. Os marinheiros invadiram-na e amaram-na furiosamente, como só se invade a mulher amada. A Zambézia bela, encantada, gritava em orgasmo pleno: vem, marinheiro, ama-me, te darei um filho.

(Ibidem, p. 62-63)

 


 

 

 

A relevância das mulheres também é exaltada nas páginas finais da obra, quando Delfina reflete acerca dos papeis desempenhados por elas nas sociedades tradicional e contemporânea, idealizando a existência de um mundo onde

 

As mulheres sozinhas são rainhas e têm orgulho de existir como no princípio do mundo. Escravizadas, saem à rua, lutam pela liberdade, mas quando estão dentro do quarto imploram de novo pela escravatura e domínio masculino. E os homens, esses heroicos vencedores, são reis apenas quando estão sós. Nos braços das mulheres uivam como crianças.

(Ibidem, p. 301)



 

A loucura de Maria das Dores, filha de Delfina com José (o marido negro), põe em atividade a memória da protagonista, vindo à tona todos os conturbados acontecimentos que a encaminharam à solidão, miséria e perda: os casamentos com José e Soares, o envolvimento sexual com o feiticeiro Simba e a separação dos filhos. A partir daí, inicia-se uma retomada crítica em relação à sua trajetória de vida:

 

Reinei. Aterrorizei. O único tormento que sofri nesta vida maldita foi a dor de ter perdido. Vinguei-me de tudo. Roubei o amor dos homens, deixando frio nas camas das outras mulheres. Destruí famílias. Arrastei muitas virgens para o abismo e fiz fortuna no meu prostíbulo. Tomei todas as poções mágicas contra a pobreza e afastei todas as rugas do meu rosto. Bailei nua nas noites de lua e hipnotizei os homens da terra inteira, cumprindo o meu supremo destino.

(Ibidem, p. 44)


 

Maria das Dores, a louca do rio, como é conhecida pelos habitantes da região, é a “filha do longe”, estrangeira em relação a si mesma, vitimada pelo “antagonismo dentro de sua própria razão” (MACHADO, 2005, p. 36), pelo conflito:


 

 

Já não sei bem de onde vim, nem para onde vou. Por vezes sinto que nunca nasci. Estarei ainda no teu ventre, minha mãe? Todos perguntam de onde venho. Querem saber o que sou, porque nada sou. [...]

Quem sou eu? Uma estátua de barro, no meio da chuva. [...]. Eu sou a Maria das Dores. Aquela que desafia a vida e a morte a busca do seu tesouro.

(CHIZIANE, 2008, p. 17-18)



 

Após sua mãe, Delfina, ter usado sua virgindade como moeda de troca e tê-la entregado ao feiticeiro, Maria acaba tornando-se a primeira esposa de Simba. Não suportando a convivência com o marido, que a violenta fisicamente — “Com violência, os homens mantêm as mulheres fiéis à paulada” (Ibidem, p. 271-272), ela faz do álcool e das drogas um anestésico para suas dores, e silencia — “acho que estou mesmo morta, confirma” (Ibidem, p. 274), pois calar os sentidos é, na retórica do oprimido, o caminho para a resistência (ORLANDI, 2007).

Em Moçambique, a violência contra as mulheres ocorre no ambiente doméstico, onde a polícia, muitas vezes, não pode violar a privacidade do cidadão, a não ser que haja queixa contra este. Na sociedade tradicional, uma mulher que se queixa de violência no lar às autoridades atrai a ira dos familiares do marido.

Até decidir fugir de casa, encontrando na loucura uma forma de suportar as perdas sofridas, como acontece com Maria das Dores; esta, acaba por perder o centro que lhe garantia uma identidade, culminando na íntima desordem da personalidade:

 

Naquele momento se apagam as luzes da mente. No céu as estrelas indicam outros destinos. Ela corre, sonâmbula, navegando no barco de luar, percorrendo todo o mar e toda a terra até completar e ultrapassar todas as fases de todas as luas. Procurando em todas estações celestiais: não viram os meus filhos por aqui, não viram? Meus filhos de verdade e não estes, que não choram e nem mamam. E o vento respondia: vimos sim. Ali. Lá. Acolá. Quando atingia o ponto indicado encontrava a mesma resposta. Ali. Lá. E ela empreendia um novo percurso até completar o perímetro da terra.

(CHIZIANE, 2008, p. 279)


 

 

Como uma das personagens da Nau dos Insensatos, a loucura de Maria das Dores é encenada no palco das ruas, no rio, onde nada completamente nua:

 

A multidão vê a mulher nua sentada num trono de barro, beira do rio. Na posição de lótus, colocando sua intimidade na frescura do rio. Vê-lhe o interior desabrochado, como um antúrio vermelho com rebordos de barro. Vê-lhe as tatuagens no seu ventre de mulher madura. [...]. Os pés da mulher nua contaram já muitas pedras no caminho. Palmilharam vários destinos à busca de um tesouro. Como uma condenada a caminhar a vida inteira. Atiraram-lhe pedras por todos os lados onde passou. Expulsaram-na com paus e pedras, como um animal estranho que invadia propriedades alheias.

(Ibidem, p. 12-13)


A água, tradicionalmente atrelada à fertilidade, é, segundo Chevalier (2003), símbolo do germe da vida e da infinitude das possibilidades. Nadar no rio significa, então, para Maria das Dores, restaurar sua vida, retornar ao princípio, aos montes Namuli

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