Por: Marli Dias Ribeiro
O papel feminino em relação ao cuidado, remota os primórdios da história da espécie, há mais de cem mil anos nossos ancestrais nômades realizam a divisão de tarefas. Aos homens, a tarefa da obtenção de carne e a defesa do grupo e às mulheres a coleta de frutos, folhas e raízes, o processamento dos alimentos coletados e o cuidado dos filhos pequenos. E hoje, qual a relação do feminino com o cuidar?
Ainda em relação a nossos antepassados, estima-se que já naquela época 70% do sustento do grupo era coletado pelas mulheres. Passamos pela revolução agrícola, e com fixação dos grupos nos territórios, a propriedade afetou o trabalho feminino, que durante séculos, passou a ser projetado aos lares, onde a mulher estaria "protegida", restrita às atividades reprodutivas e domésticas, ou a atribuições menores na atividade produtiva em ocasiões determinadas, como a colheita. No modelo agrícola indicava-se uma necessidade de mão de obra, sobretudo masculina, as mulheres tinham mais de 20 filhos, muitos morriam. O mesmo fim, atingia as parturientes. A mortalidade infantil e materna fez parte da história humana pós-agricultura, “era normal”. O cuidado com a prole e as tarefas de organização do lar e da propriedade eram dura e intensa, uma vida de trabalho, procriação, cuidado e morte (Carvalho et... al, 2008).
No período de Revolução Industrial a participação da mulher no trabalho produtivo começa a abrir-se, os cuidados, agora, ampliaram-se com o emprego e as atividades domésticas, ambos, aliados a discriminação nos salários, sempre mais baixos, para mulheres. Segue o tempo das guerras, e finalizada a Segunda Guerra Mundial o mercado de trabalho cresceu, se ampliavam as oportunidades nas áreas de saúde (enfermeiras, médicas, assistentes sociais) e de educação, representando um aumento na exigência por qualificação e escolaridade, um trabalho indicado às mulheres.
Entretanto, ao longo da história e ainda hoje, o cuidar, o cuidado, permeou a profissionalização feminina. Para Delcor e Cols. (2004) à docência, assim como a enfermagem, foi considerada "atividade própria das mulheres por envolver o cuidado dos outros" (p. 189). As mulheres foram chamadas para ocupar os cargos de educadoras, como uma continuação das tarefas exigidas no âmbito doméstico. As cuidadoras, mulheres, sempre prevaleceram em casos de cuidados com doentes, idosos, enfermos, etc. Apesar da abertura crescente no mercado de trabalho e de encontrarmos um avanço, em cargos antes não previstos para o feminino, a jornada dupla permanece: os afazeres domésticos, gerenciamento do lar e o cuidado dos filhos ainda recaem sobre elas, na grande maioria dos casos. Trabalho fora e dentro de casa, a infinita jornada.
De outro modo, e não menos complexo, são os enfoques relacionados ao aspecto psico-biológico. Eles defendem que a mulher seria mais predisposta ao cuidado dos filhos, um argumento funcional e evolutivo de que seu investimento parental, é maior do que o do homem. Ainda, existem os enfoques culturais que associam a condição feminina como cuidadora com as relações sociais, onde meninas seriam encorajadas desde cedo a brincar com bonecas e casinhas, a cozinhar e os meninos as atividades de força, de valentia, de contenção emocional, exploração do mundo (Lyra e Cols., 2005).
O fato é que a abrangência e complexidade do tema tem ganhado espaço e precisamos repensar o papel feminino no ato de cuidar, pois seguimos cuidando dos outros e pouco de nós mesmas. Mudanças importantes nas relações de gênero e do lugar social da mulher ainda trilham caminhos rumo à igualdade de direitos. Porém, permanecemos horas e horas cuidando dos filhos, dos pais, dos maridos, da casa, dos pets... A palavra de urgência que indico é autocuidado, pois o papel de heroínas invencíveis ao cansaço, mascara o adoecimento físico, mental e social. Perguntemo-nos então, e de nós cuidadoras, quem cuidará?
Referências:
Carvalho, A. M. A., Cavalcanti, V. R. S., Almeida, M. A. de., & Bastos, A. C. de S. (2008). Mulheres e cuidado: bases psicobiológicas ou arbitrariedade cultural? Paidéia (ribeirão Preto), 18(41), 431–444.
Delcor, N. S., Araújo, T. M., Reis, E. J. F. B., Porto, L. A., Carvalho, F. M., Silva, M. O., Barbalho, L., & Andrade, J. M. (2004). Condições de trabalho e saúde dos professores da rede particular de ensino de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 20, 187-196.
Lyra, J., Leão, L. S., Lima, D. C., Targino, P., Crisóstomo, A., & Santos, B. (2005). Homens e cuidado: Uma outra família? In A. R. Acosta & M. A. F. Vitale (Orgs.), Família: Redes, laços e políticas públicas (pp. 79-91). São Paulo: Cortez.
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