Por: José Salibi Neto
Por dever profissional e por gosto pessoal, tenho escrito com frequência sobre campeões da vida. Você pode ter lido algum texto meu sobre gente como Peter Drucker, que só inventou a administração moderna, inclusive quando já era mais velho. Ou sobre Jorge Paulo Lemann, um empresário made in Brazil que hoje integra a linha de frente da economia mundial. Sobre Edson Bueno, médico de origem humilde que conseguiu erguer um império em uma área tão complexa e delicada como a saúde. Sobre Abílio Diniz, homem-de-ferro dos negócios, capaz de superar de briga familiar a sequestro, controverso e eficaz como Tony Stark.
Agora peço licença para escrever sobre Norma Salibi. Trata-se da minha mãe e acaba de nos deixar. Durante muito tempo tive uma relação conflituosa com ela e, por isso, sou a pessoa mais isenta do mundo para dizer que foi uma campeã em tudo – em todos os aspectos que valem a pena na vida. Ela merece ter sua história conhecida.
Era uma vez uma “italianona”, o protótipo do italiano cabeça-dura e temperamental. A melhor expressão que encontro para defini-la não vem do português nem do italiano, mas do inglês: “My way or the highway”. Norma era exatamente assim: “Faça do meu jeito ou rua” (numa livre tradução).
Quer um exemplo? Norma queria que eu fosse jogador de vôlei, como ela havia sido, e que chegasse à seleção brasileira. E, porque ela queria, eu joguei vôlei pelo Clube Pinheiros até os 14 anos de idade. Só que acabei indo para o tênis, minha grande paixão. E Norma por muito tempo não me perdoou. Contrariar uma “italianona” não foi fácil, viu?! Também não foi fácil entender o bem que ela me fazia assim, mas eu acabei entendendo.
Comecemos pelo começo. Norma nasceu em berço de ouro na família Vaccaro, filha única de Giuliano e Michelina. Seu avô paterno Michelle (pronuncia-se Miquele) havia feito fortuna com calçados artesanais e com imóveis – muitos dos terrenos onde hoje é a Avenida Paulista lhe pertenciam – e ela morava em uma casa de quatro andares na Rua Augusta.
De repente, como num roteiro de Hollywood, a família Vaccaro perdeu tudo na mesa de pôquer. Michelle passava horas jogando, muitas vezes com a neta de 10 anos no colo, e, a cada perda, lá se ia uma escritura de terreno da Paulista. Aos 16 anos, a neta teve de trabalhar fora para ajudar nas contas, dando aulas de ginástica.
Norma foi uma guerreira. Além de trabalhar, estudou bastante; conseguiu entrar no curso de Educação Física da disputada Universidade de São Paulo, a USP. Tornou-se uma grande levantadora de vôlei. Entrou para a então fortíssima equipe do Clube Pinheiros, onde jogava com a camisa número 6, e chegou a ser considerada a melhor levantadora do Brasil. Defendeu a Seleção. Jogava com a atacante Coca, sua amiga até o fim. Em casa não faltavam recortes de jornal sobre essa parte da história.
Minha mãe conheceu meu pai justamente no Clube Pinheiros. Ele era um libanês bonitão, de quase 1,90 m de altura, e talvez uns 3 m de envergadura (fazia halterofilismo e natação, embora não competisse). Em um baile, minha mãe dançava com o Paulo, um pretendente que mais tarde se tornou um bom amigo, e o Salibão (como o chamavam) interrompeu os dois. Pediu a honra da contradança e nunca mais a largou. E olhe que eram pessoas muito diferentes: ele tranquilo e conciliador, ela agitada e “mandona”.
Norma conseguiu um emprego na Secretaria Municipal de Esportes para atuar como professora nos parques públicos infantis, onde as mães carentes deixavam seus filhos para poder ir trabalhar. A ela cabia propor atividades esportivas, jogos, rodas de dança. Passei a infância vendo seu carinho com a meninada, que se divertia até não poder mais e, ao mesmo tempo, aprendia muitas lições.
Com ela eu aprendi sobre igualdade; o abismo entre ricos e pobres nunca existiu lá em casa. Empregada era parte da família e, quando a nossa se casou, seu marido veio morar conosco. Quando a filhinha deles nasceu, minha mãe se tornou sua madrinha; Norma e Daniela sempre foram muito próximas.
Aos filhos, Norma também deu muitos presentes, e o maior deles, no meu caso, foi me colocar no esporte competitivo. Logo pequeno fui fazer natação, ginástica olímpica, basquete, vôlei, futebol... nasci correndo. Para o tênis, fui contra a vontade dela como já confidenciei. Mas bastou Norma entender minha paixão e já acompanhava todos os meus jogos, passava-me exercícios complementares, passou a jogar tênis ela mesma, acelerou muito meu desenvolvimento. Com 16 anos, eu já disputava torneios de adultos!
Minha mãe era uma leoa e a primeira vez que me dei conta disso foi em uma partida de tênis. Eu jogava contra Júlio Góes, um tenista muito bom na época, e tive uma tremenda dor de cabeça; abandonei a quadra no meio do terceiro set. Quando entrei no carro para irmos embora, ela mostrou sua fúria: “Você nunca deve desistir de nada na vida – nunca, nunca, NUNCA”. Gritava comigo como uma leoa ruge. Ouço seus gritos até hoje. E nunca mais desisti.
Ela certamente não desistia.
Quando eu tinha 18 anos, fui para Santos disputar o Banana Ball, um dos maiores torneios juvenis do mundo, como segundo colocado do ranking nacional. Haveria três jogos contra a França, dois individuais e um de dupla e, sem saber o porquê, não fui escalado para entrar em quadra. Norma me perguntou o que havia acontecido e, quando eu disse não fazer a menor ideia, ela saiu andando. Minha mãe sumiu por uns 20 minutos, voltou e me disse: “Vai se aquecendo que daqui a meia hora você vai jogar contra o Yannick Noah”.
Minha mãe mudou a escalação da equipe brasileira.
Ela nunca me contou o que houve, porém, mais tarde, eu soube dessa parte da história por terceiros. Os dez dirigentes estavam em reunião em uma sala, Norma entrou sem pedir licença, bateu forte na mesa e perguntou: “Algum de vocês é homem o suficiente para me dizer por que meu filho, número 2 do Brasil, não vai jogar?” (Os pais do potencial substituto, que era o número 3 do ranking, tinham um relacionamento melhor com esses dirigentes, mas ninguém diria isso, acho.)
O fato é que, quando leõezinhos são ameaçados, leoas atacam.
Chegou o dia em que decidi ir para os Estados Unidos. Norma ficou preocupada (“desesperada” seria a palavra mais adequada, talvez), o dinheiro era muito contado e ela não entendia o que era estudar fora do Brasil. Mas não desisti como ela ensinou, consegui bolsa de estudo e fui fazer mestrado. Ela superou seus próprios medos também – e me apoiou.
Fez a mesma coisa quando voltei e decidi fundar minha própria empresa, a HSM, com dois amigos. Nosso primeiro escritório funcionou na casa dela, na Rua Cardoso de Melo nº 560, e até público para os nossos eventos ela providenciou.
Não brinco ao dizer isso. No nosso primeiro evento, o palestrante fez uma exigência abusiva: ele era pintor nas horas vagas e queria expor no Brasil (os quadros eram horrorosos). Para nosso êxito, era importante lotarmos a galeria na vernissage e minha mãe encarregou-se de arrumar público. Ela recrutou os parentes – cerca de 50 – e ainda os treinou para se mostrarem impressionados com a beleza das obras e para parabenizar o artista em inglês!
Norma entrou em cena novamente em um evento marcado para acontecer três semanas após o Plano Collor, quando, devido ao congelamento do dinheiro, o público cancelou presença em massa. Precisávamos manter o evento e mostrar ao mercado e aos palestrantes a solidez e da HSM e Norma lotou a plateia mais uma vez, com parentes e amigos. Uma leoa não faria melhor por seu leãozinho.
Se força se prova na dificuldade, a força da minha mãe se provou imensa. Por exemplo, quando, aos 54 anos, perdeu meu pai, o amor da sua vida, e ficou só. Ela até seguiu os conselhos de amigas e deu chance a um senhor alemão. Mas bastou ele reclamar de que Norma falava muito do filho que ela rompeu o relacionamento. Nunca mais houve outra pessoa.
Na doença que acabou por levá-la, a bravura foi a mesma. Ela enfrentou cirurgias, tratamentos e dores sem reclamações. Nem chorar chorou (a não ser quando via a foto do meu pai). Nunca demonstrou medo, nunca entrou em pânico. Minha mãe se comportou como a leoa que era, sempre olhando fundo nos nossos olhos, sempre segurando forte nas nossas mãos.
Por tudo isso, digo que Norma é campeã da vida.
Venceu no amor, pois amou e foi amada. Sua relação com meu pai foi autenticamente do tipo amor eterno.
Venceu na carreira. Chegou ao cargo máximo em seu trabalho como administradora pública, indo de professora a coordenadora dos parques infantis municipais, sempre encantando seus clientes (as crianças).
Venceu nos esportes, consagrada como a melhor levantadora de vôlei de seu tempo e defendendo a seleção de seu país.
Venceu na amizade. Aquela senhora tinha tantas turmas de amigos que até era difícil conciliar os horários de encontros do grupo da tranca, do vôlei, do tênis, do boliche, do chá etc. A companheira de seleção Coca, grande atacante de vôlei, foi sua amiga até morrer (ela se foi um pouco antes de Norma).
Venceu como mãe. Posso dizer que minha irmã, Regina Helena, e eu estamos razoavelmente bem encaminhados, e que a participação dela nisso é gigantesca.
E, talvez mais importante, venceu a si mesma, inúmeras vezes – seja quando sua família perdeu a fortuna e precisou ir à luta, seja quando enviuvou e tocou a vida com sua aposentadoria, seja quando enfrentou a doença que a fez reencontrar meu pai. Tinha de permanentemente vencer seus nervos à flor da pele, inclusive. (Porém, nunca vi minha mãe com inveja ou ciúme de alguém, imagina isso?)
Espero poder passar esse coração de leoa para a neta dela, Cristiana, que é a minha filha. Sei que tento fazê-lo todos os dias.
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