Por: Juliana Primi
Resumo: Uma das expressões máximas da poesia de língua portuguesa, a obra de Cecília Meireles nos mostra uma mulher de alma rara e delicada. Como a “pequena flor” do poema que faz parte de Vaga Música, publicado em 1942, ela também “recebeu uma chuva enorme” – relacionada às agruras que sofreu - e, mesmo assim, preservou o perfume da poesia que dormia na “seda frágil”. Diante do lirismo fluente dos versos cecilianos, analiso a sensibilidade feminina em “Pequena Flor”, discorrendo um olhar sobre a fragilidade, que aqui se relaciona à angústia existencial presente no coração e sobre o mistério da existência, que se mescla ao mistério da própria criação poética.
Palavras-chave: Literatura Brasileira; Poesia lírica; Feminino
Abstract: Cecília Meireles is a woman with a rare and delicate soul. As the “pequena flor” (“small flower”) of her poem, part of her book Vaga Música, published in 1942, Cecília Meireles also received “uma chuva enorme” (“pouring rain”) – related to the losses that she suffered in life – and preserved the perfume of her poetry. I analyze the feminine sensitivity in "Pequena Flor", while taking a look at fragility in its relation to existential anguish and at the mystery of existence, which is related to the mystery of poetic creation itself.
Keywords: Brazilian Literature; Poetry; Feminine
PEQUENA FLOR
Como pequena flor que recebeu uma chuva enorme
e se esforça por sustentar o oscilante cristal das gotas
na seda frágil e preservar o perfume que aí dorme,
e vê passarem as leves borboletas livremente,
e ouve cantarem os pássaros acordados sem angústia,
e o sol claro do dia as claras estátuas beijando sente,
e espera que se desprenda o excessivo, úmido orvalho pousado, trêmulo, e sabe que talvez o vento
a libertasse, porém a desprenderia do galho,
e nesse temor e esperança aguarda o mistério transida- assim repleto de acasos e todo coberto de lágrimas
há um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida.
A leitura que faço de “Pequena Flor”, embora breve, define-se menos como uma análise e mais como um instante de contemplação, em que olho, escuto e dobro meus sentidos diante da palavra que reverbera na poesia de Cecília Meireles, mulher de alma rara e delicada.
Nascida em novembro de 1901, ela estreia com Espectros em 1919, ao qual se seguem Nunca mais.. e Poemas dos poemas (1923) e Baladas para el-rei (1925). Somente depois destes que vêm Viagem (1939) e Vaga Música (1942). No ano de lançamento, Viagem ganhou o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras e, nas palavras de Marisa Lajolo (2006:8), a poeta seguiu tecendo sua vasta e variada obra, sempre caprichosa e sempre fiel a seus primeiros livros, que já mergulham o leitor em clima de espanto maravilhado e inquirição face aos mistérios da existência humana.
Vaga Música chega como um tecido harmônico de sons, já anunciado no título, para que o leitor mergulhe na suave musicalidade da obra, onde se repetem canções, cançõezinhas, cantigas, embalos e semelhantes palavras tomadas de empréstimo do universo da música.
O canto é a possibilidade do vôo, apesar da desintegração e do caos da existência imperfeita e limitada no tempo. Cantar é ascender, levantar-se, transcender. A poesia é a forma máxima de transcendência e a suprema reinvenção da realidade. A música, o aroma, a estrela, a chama e a flor do espírito eternizam a obra poética e seu criador.
Em “Pequena Flor”, Cecília nos mostra seu traço lírico feminino, sua poesia essencial, sua busca constante de respostas aos porquês e ao destino da viagem sem prazo certo que todos neste planeta empreendemos. A poeta ‘‘recebeu uma chuva enorme’’, metáfora das perdas em sua vida (Cretton, 1984), desde a morte precoce dos pais, dos irmãos Carlos, Vítor e Carmen, e da avó que a criou, D. Maria Jacinta, até a morte do primeiro marido, Fernando Correia Dias, em 19 de novembro de 1935, em circunstâncias trágicas, que transformaria sua visão de mundo.
Em carta aos amigos Diogo de Macedo, Manuel Mendes, Luís de Montalvor, José Osório de Oliveira e Raquel Bastos, a poeta diz:
Faço esta carta-circular porque não tenho força para escrever a cada um isoladamente. Levei um mês sem dormir nem comer. Sustentada por palavras e remédios. E sem nenhum interesse pela vida. Fazer o quê, depois disto? Nem amar vale nada, então? Os amigos daqui dizem-me coisas: que é preciso viver, que eu tenho as crianças, que tenho a arte... A arte! Que importa! As crianças... – ah, não se é nada, em nenhum destino, nem no nosso. Se fôssemos, o Fernando não faria o que fez. Porque eu levei 13 anos sobre essa tragédia, tentando dominá-la e dando-me, dando-me, dando-me infinitamente, sob todas as formas, num sacrifício contínuo a um destino que estava sempre adivinhando. Que adiantou? Que a fatalidade a retardasse? Nem isso. Tudo está previsto, fixo e há um ritmo inexorável. E quando penso na minha presciência de tudo que de grave se suspende em redor de mim e dos que amo; quando reflicto na resignação com que espero o que está para acontecer; e no desprendimento em que vivo perante a certeza dos meus insucessos, - pergunto, que teria feito de mim, neste momento, se a minha formação não fosse esta, uma vez que tudo isso não impediu o quase total desmoronamento da minha vida. [...] (Saraiva, 1998: 6).
Em seu momento de desabafo, podemos compreender a sensação de impotência perante a “fatalidade”, e das dificuldades que antevia com três filhas para criar. Sua indignidade associava-se à trágica revolta contra o destino: “tenho uma infinita pena de mim; da minha infantilidade; da minha inocência” (idem: 5).
O sucesso da bonita, inteligente e sensível mulher junto aos portugueses foi tão notório quanto o apagamento do marido, que às vezes, sentia-se ignorado em um canto dos salões nos quais Cecília centralmente brilhava.
Apesar desta ‘‘chuva enorme” (que contrasta com a ‘‘pequena flor’’), ela tentou e conseguiu preservar o perfume da poesia que dormia “na seda frágil”. Já nos primeiros versos, o campo da experiência sensível e o campo da poética se cruzam.
De acordo com Ana Maria Lisboa de Mello (2006), a concepção do Uno indestrutível, contrapondo-se ao aniquilamento dos entes no mundo físico, expressa-se, na poesia de Cecília Meireles, através de pares simbólicos opostos e, como tal, complementares, os quais transmitem a noção de que essa Realidade Absoluta passa por períodos cíclicos de manifestação e desaparecimento, representados pelos dualismos: água-mar/areia; noite/dia; céu/terra. A esses pares, subordinam-se outros elementos tais como âncora, concha, vento, corais etc., que formam as sintaxes simbólicas que delineiam a visão de mundo que vai sendo expressa.
A simbologia da água é frequente em sua obra e mostra a ideia de que a vida se origina de um estado pré-formal, de onde emanam todas as formas de vida que, cumprindo um prazo no cosmo, retornam ao indiferenciado. A morte é vista como libertação dos “enredos terrenos” e, portanto, não significa a extinção do ser humano, mas uma outra condição de “vida”, um outro modo de ser.
Em “Pequena Flor”, a poeta utiliza as palavras de forma que o leitor mais atento perceba a polaridade do “eu” x “outro”, ou seja, da Vida x Divino: há várias metáforas como “chuva”, “gotas”, “úmido”, “lágrimas”, ligadas à “água” em oposição ao “vento”, símbolo de Deus, no universo ceciliano. A apresentação em forma de símbolos mostra um aspecto sensível de interiorização: o desejo de converter sua imanência em transcendência.
A fragilidade da mulher se relaciona à angústia existencial presente no coração “todo coberto de lágrimas" como o “úmido orvalho’’ na pele da flor, aprisionada no galho em oposição às leves e livres borboletas e aos “pássaros acordados sem angústia”: e vê passarem as leves borboletas livremente,e ouve cantarem os pássaros acordados sem angústia, e o sol claro do dia as claras estátuas beijando sente, e espera que se desprenda o excessivo, úmido orvalho pousado, trêmulo, e sabe que talvez o ventoa libertasse, porém a desprenderia do galho (Meireles, 2006: 131).A conjunção “porém” aparece como uma advertência, como um sintoma de alteração no poema (“porém a desprenderia do galho”). É a condição do eu lírico aprisionado ao medo do futuro misterioso, mesmo que o vento o libertasse.
Entre o temor do sofrimento e da morte e a esperança da libertação, da vida, “a flor aguarda o mistério transida’’, o mistério da existência se mescla ao mistério da própria criação poética, pois a comparação iniciada no primeiro verso só se completa nos dois últimos, onde se revela a existência de um ‘‘coração’’ que é capaz de re-cordar (do latim, cor, cordis), no sentido de trazer ‘‘de novo ao coração”: e nesse temor e esperança aguarda o mistério transida- assim repleto de acasos e todo coberto de lágrimashá um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida. (idem: 132).
O sujeito lírico não se apresenta diretamente, o que contribui para intensificar a fusão entre “flor” e “coração”, irmanados no mesmo estado afetivo. Se o coração existe identificado à transida flor, esmorecida de frio, dor e susto, torna-se possível a "re-cordação”. Diante disso, basta relembrar os magistrais versos de Quintana e concordar com o poeta:
[…] E seus poemas eram, de repente, como uma prece
jamais ouvida
que nossos lábios recitavam – ó temerosa delícia!
como se, numa língua desconhecida,
sem querer, falassem
da brevidade
e da
eternidade de vida...
[…] Nem tudo estará perdido
enquanto nossos lábios não esquecerem teu nome:
Cecília...
(Quintana, 2006: 455)
Bibliografia
CUNHA, Helena Parente (1975). Teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
CRETTON, Maria da Graça Aziz (1984). «O jogo inquieto entre o efêmero e o eterno. Uma leitura de Cecília Meireles». Perspectivas: ensaios de teoria e crítica, Rio de Janeiro, Faculdade de Letras/UFRJ, 1,115 -130.
GOUVÊA, Leila (2001). «A capitania poética de Cecília Meireles». Revista Cult, ano V.
_______ (1999). «Cecília Meireles e a Crítica». Mulher e Literatura: Literatura e Crítica Feminista, Niterói, 2.
MEIRELES, Cecília (2006). Viagem & Vaga Música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
MELLO, Ana Maria Lisboa de; UTÉZA, Francis (2006). Oriente e Ocidente na Poesia de Cecília Meireles. Porto Alegre: Libretos.
QUINTANA, Mário (2006). Poesia completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar.
SARAIVA, Arnaldo (1998). «Uma carta inédita de Cecília Meireles sobre o suicídio do marido Correia Dias (06-01-1936) ». Revista Terceira Margem. Porto.
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